
CINEMA INDÍGENA: QUEM FAZ?
por Rhuan de Castro e Letícia Feitosa
No estado do Ceará, a presença indígena é consideravelmente forte, sendo representada por 14 povos, espalhados em 18 municípios da região. As comunidades Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara,Tapuia-Kariri,Tremembé, Tubiba-Tapuia e Tupinambá, respaldam a essência de sua ancestralidade, a qual é esquecida ou ignorada em produções cinematográficas.
Veja no mapa abaixo onde essas aldeias se encontram:
“O audiovisual é muito forte na juventude e precisamos sempre fortalecer” (João Kennedy Tapeba)
Para João Kennedy Tapeba, coordenador da Articulação dos Jovens Indígenas Tapeba, o audiovisual é uma ferramenta de empoderamento capaz de promover ensinamento e engajamento com a causa indígena, assim como representatividade municipal, estadual e nacional. “O audiovisual é muito forte na juventude e precisamos sempre fortalecer. Oferecemos oficinas e assembleias para que os jovens compreendam a política de demarcação de território”, afirma. Parte de suas produções é feita por intermédio de smartphones, tanto na gravação de áudio quanto de imagem.
A representatividade também adquire consistência pela atuação da pioneira Escola de Cinema Indígena Jenipapo-Kanindé (ECINDIJ). Inaugurada em agosto de 2018 no município de Aquiraz, a instituição foi desenvolvida pela Associação de Mulheres Indígenas Jenipapo-Kanindé e tem como objetivo dar oportunidade para as 14 etnias cearenses contarem suas histórias pela própria perspectiva. O sistema pedagógico preza pela criatividade coletiva, aprofundando conhecimentos com oficinas direcionadas para esse campo de atuação.
Conheça o trabalho da Escola no mini documentário "O cinema Jepipapo-Kanindé":

FOTO: João Kennedy Tapeba/Arquivo Pessoal
Izabelle Louise: Eu venho observando que as produções cinematográficas feitas por pessoas brancas, tais como antropólogos, ainda nos colocam como possíveis seres selvagens ou guardiões das florestas, sendo que, na realidade, este imaginário deveria ter ficado em 1500. Afinal, não são todos os povos que partilham dos mesmos costumes. Então, esta ideia que o cinema branco transmite é muito irreal. É um falso índio. É um índio que não existe. Eu observo que, em contraponto a isso, há produções cinematográficas feitas por indígenas e indigenistas que respeitam a nossa cultura. Então, é complicado responder essa pergunta, porque existe um desrespeito por uma parte e um respeito por outra parte. Nós lutamos para uma representação ideal e respeitosa sobre nós.
P: A respeito da campanha publicitária (Terra, Luta, Memória e Identidades) para o recente Dia do Índio, como se deu o desenvolvimento da campanha e qual é o seu principal objetivo?
P: Como a participação da população indígena em produções audiovisuais pode contribuir para o cenário cinematográfico local?
IL: Os povos originários no Ceará têm produzido arte e conteúdo. As produções audiovisuais fazem parte disso também. Como eu falei anteriormente, as apresentações dos povos originários são equivocadas porque se baseiam no estigma de sem alma, selvagem e animalesco. Estas imagens, que são coloniais, remetem a estereótipos e paradigmas que prejudicam o que se compreende do que seria ser índio. Então, as produções cinematográficas dos povos originários, feita por nós e para nós, tem sido essas imagens descoloniais, narrativas que desmontam esse colonialismo contemporâneo. Porque a arte que temos produzido rompe imageticamente com uma hierarquia de racismo ocidental. Nós construímos imagens que ativam nossa cultura, mostram nossas tradições e constrói uma representação de construção e compreensão muito maior do que querem colocar para a gente. Nós somos muito maior do que essa representação. Os povos originários tem sido muito importantes nestas produções. Nas aldeias, os Kurumins e Cunhantãs estão presentes nesse processo. Hoje em dia, se vai até qualquer assembléia, encontro de juventude ou evento de intercâmbio cultural, e você vê a comunidade pegando nas câmeras, sendo agente/sujeito de arte ao invés de objeto. Então, essa participação tem contribuído para uma descolonização do olhar.
P: Então, de que forma o audiovisual contribui para uma melhor representação indígena na mídia?
IL: Na arte ocidental, cinema e fotografia sempre nos tratou como seres exóticos. Na literatura sempre com esse mito de sermos apaixonados pelo colonizador branco, como é o exemplo da Iracema. Eu acho importante falar que essa concepção de arte ocidental é do ocidente. Ela não nos abarca. Nós temos nossos critérios, normas e compreensões. Essas formas de existência que temos é diferente. Então, é muito importante compreender que essa concepção do que seria a arte quando pensamos no audiovisual é uma concepção ocidental. Nós trazemos esta concepção e adaptamos para nossa vivência.
P: Levando em consideração o atual contexto sócio-político do país, quais as maiores dificuldades encontradas pelos povos originários em buscar protagonismo no audiovisual?
IL: Todos os governos anteriores e o atual sempre foram contra a nossa existência. Nunca houve uma lei de proteção da nossa terra ou da nossa vida. Estas dificuldades são encontradas no que é o básico, que é o direito de existir. Tudo isso afeta em como nós vamos produzir arte. Se não temos direito à vida, então, não temos como produzir. Infelizmente, nós vivemos em um mundo capitalista e precisamos de dinheiro para produzir. É uma política realmente de morte. Quando se tem terra, tem vida garantida. Então, a política de genocídio no país, na verdade, em todo o continente da América Latina, que compreendemos como a baiala, e no território de Pindorama, que compreendemos como Brasil, sempre existiu. Sempre existiu uma política de apagamento histórico e genocídio contra a população originária. Então, a situação atual reflete nisso. Mas antes mesmo de isso acontecer, nós já sofríamos ataques.
IL: A campanha para o Dia do Índio se deu a partir de uma conversa com a professora e doutora Glícia Pontes. Eu fui convidada juntamente com a Roberta França da ONG [Organização Não-Governamental] Adelco [Associação para Desenvolvimento Local Co-produzido], para estar presente em uma aula da disciplina de Ética Aplicada à Criação Publicitária. Nesse momento, nós conversamos sobre as pautas que são importantes dentro do movimento indígena. Nós elegemos a “Terra, Luta, Memória e Identidade” como quatro pontos que formam nossa vivência. A partir disso, conversamos sobre o que é ser indígena, já que são mais de 300 povos indígenas no que nós compreendemos como Brasil. Então, nós somos povos que construímos nossa ancestralidade por meio da contação de história, de grafismo, instrumentos de luta e rituais, como o toré e o torem. A partir disso, nós tentamos conversar e explicitar sobre esses processos de produção material das nossas tradições, sobre esse processo de luta que dura mais de 500 anos e quanto essa luta é histórica e incessável. Como nossa cultura deve ser valorizada. Tudo isso por uma coisa tão básica que a terra, o direito de viver e ter uma vida garantida. Essa campanha serviu como uma denuncia a toda a política de genocídio que vem sendo exercida pela colonialidade, desde a criação do que seria o Brasil.
FOTO: Peça da campanha "Terra, Luta, Memória e Identidade"/ Divulgação
FOTO: Zózimo Bulbull, um dos primeiros diretores negros brasileiros, em "Alma no Olho"/ Divulgação

FOTO: Izabelle Louise Tremembé/Arquivo Pessoal
Pertencente a comunidade Tremembé, Izabelle Louise, sempre teve contato com o audiovisual. Desde nova utilizou uma câmera da família para fotografar o fluxo da Almofala, Itarema e Fortaleza. Sua jornada acadêmica está repleta de participações em eventos voltados para a causa indígena, assim como na busca por respeito e representatividade dos povos. A publicitária, fala em entrevista a respeito da essência indígena que é consideravelmente ignorada diante da imagem estereotipada tão presente no universo cinematográfico. Confira:
Pergunta: Sua trajetória acadêmica envolve diversas participações em eventos sobre a representatividade e essência da cultura indígena. Atualmente, o conhecimento das populações indígenas é respeitado pelas produções cinematográficas? Quais as melhores maneiras de transmitir esse conhecimento?
“Os povos originários no Ceará têm produzido arte e conteúdo. As produções audiovisuais fazem parte disso também” (Izabelle Louise Tremembé)
FOTO: Uma das peças da campanha Terra, Luta, Memória e Identidades/ Divulgação
